terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Copeira leva cuspe na cara e após sete meses ainda tem sobressaltos

Já se passaram sete meses, mas até hoje a copeira Sônia Maria Gomes de Morais tem sobressaltos e vem recebendo assistência psicológica. Um passageiro do ônibus em que Sônia estava, da linha Circular W-3/L2 Norte, cuspiu no rosto dela e a chamou de “negra safada”. Morador da Asa Norte, 35 anos, Rui* está sendo duplamente acusado de injúria racial, cuja pena é de um a três anos de reclusão, acrescida de multa. A dupla acusação deve-se ao fato de ele ter agredido também o professor de inglês André Luís Gomes Matias, passageiro que se levantou de seu lugar para defender Sônia. “Podia ter sido minha mãe”, diria ele mais tarde. André Luís é negro.
“Foi tudo muito rápido”, conta André. Quando viu o que havia acontecido, ele se aproximou do agressor e reagiu: “Você cuspiu na senhora, xingou ela” e tentou contê-lo. Rui* partiu para cima de André Luís, o chamou de “negro” e perguntou: “Você é deste país?”. Em seguida, pediu ao motorista que parasse o ônibus. “Não abra a porta. Vamos para a delegacia. Isso é crime de racismo”, retrucou o defensor da copeira. O caso levou à 5ª Delegacia de Polícia representantes da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e do Conselho de Defesa dos Direitos do Negro do Distrito Federal.O advogado do acusado, Vicente Wilson Ferreira Reis, entrou com um processo de incidente de insanidade mental, que foi anexado à ação penal. A defesa alega que Rui sofre de transtornos psíquicos, toma remédios controlados e que no dia do incidente estava com o comportamento alterado por conta de mudanças recentes na medicação. O juiz da 4ª Vara Criminal, Carlos Pires Soares Neto, determinou que o acusado seja submetido a exame psiquiátrico no Serviço de Psicopatologia Forense do Instituto de Criminalística da Polícia Civil, no início do próximo mês.Mesmo que se confirme que Rui é portador de transtorno mental, a ação penal terá prosseguimento, explica a promotora Danielle Martins Silva, do Núcleo de Direitos Humanos do Ministério Público. Nesse caso, em vez de pena de reclusão, o juiz deverá aplicar medida de segurança, seja a internação ou tratamento médico.Uma outra ação corre na Justiça. O Conselho de Defesa dos Direitos do Negro no Distrito Federal tomou a iniciativa de mover um pedido de indenização por danos morais, calculado em R$ 200 mil.Não é fácil investigar crimes de injúria racial e processar os acusados. “Uma das maiores dificuldades está na invisibilidade da violência praticada, porque o negro ainda não se reconhece na posição de vítima, tal como acontecia com a violência doméstica”, comenta a promotora Danielle Silva. A profundidade da dor de um negro ao ser discriminado é um obstáculo para o cumprimento da lei. “É grande a dificuldade de se transformar essa dor tão íntima — continua a promotora — num instrumento de efetiva mudança de valores, por meio de sentenças judiciais que reconheçam a discriminação racial como um crime que afeta objetivamente a dignidade de todos os cidadãos, e não apenas da vítima.”É sobre essa dor profunda que Sônia Maria vai falar nas linhas abaixo. Por medo, ela não se deixou fotografar por inteiro.Para lerO alufá Rufino, tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro(c.1822 - c.1853), de João José Reis, Flávio dos Santos Gomes e Marcus J.M. de Carvalho, Companhia das Letras —Rufino José Maria era fluente em árabe e sabia o Corão e outros textos do islamismo. Foi preso no Recife porque se temia a influência do ex-escravo sobre a comunidade africana. A história de Rufino é a história do tráfico de escravo, da escravidão e do Brasil escravocrata.Meu pai era pedreiro, minha mãe, dona de casa. Eles são de Goiás. Tenho seis irmãos. Sou separada, tenho três filhas minhas e um adotado. Fui criada em Brasília. Tinha 1 ano de idade quando vim pra cá. Sempre morei em Sobradinho. Minha mãe é da minha cor e meu pai era claro. Era uma vida difícil. Meu pai trabalhava, mas bebia muito. Com 7 anos, eu já estava trabalhando de babá, depois de doméstica. Era muito difícil estudar. Parei na 6ª série e, quando quis voltar, depois dos 14 anos, não consegui. Tinha perdido a vontade.Nunca sofri discriminação racial, a não ser em brincadeira. ‘Ah, cabelo ruim’. Me lembro até que quando minha primeira filha nasceu, a mãe do meu ex-marido falou que aquela era a primeira neta de cabelo ruim que ela ia ter. Engraçado que essa minha filha tem o cabelo lisinho. Meu ex-marido é mais escuro do que eu, mas o cabelo dele é liso. Foi um racismo camuflado, né?Digo que nunca sofri preconceito, mas indiretamente sofria. O preconceito não é só racial, é cultural, é de toda espécie. Trabalho em órgão público, sou terceirizada, não tenho vergonha nenhuma disso. Já trabalhei de faxineira, de tudo, e você vê a discriminação em todas as áreas, mas o que eu passei, de maneira tão brutal, jamais imaginei que iria passar.No dia 29 de abril, peguei o Circular L2/W3 Norte, em frente ao Hospital Santa Helena. Comigo entrou uma senhora. Me pareceu que o ônibus estava vazio e que só éramos eu e ela de passageira. Só que tinha um rapaz lá atrás que só fui ver depois.Mais ou menos na altura da 609 Norte, entrou a pessoa que me agrediu. Vi que era um homem todo tatuado. Do jeito que eu estava, continuei. Mais ou menos na altura da 605, ele se levantou de onde estava, parou na minha direção, cuspiu na minha cara, e me chamou de negra safada e veio mais pra perto de mim como se fosse me agredir. A única reação que tive foi fazer assim [passa a mão no rosto, como quem limpa uma sujeira]. Fiquei com muito nojo.Na hora em que ele veio para me agredir, o rapaz que estava atrás se levantou e veio pra cima dele. ‘O que você fez? Você cuspiu na senhora, você xingou ela!’ Aí ele já foi de murro pra cima do André. Foi aquela luta corporal horrível dentro do ônibus. Entrei em estado de choque, paralisei. A senhora que estava comigo no ônibus me puxou: ‘Vamos lá pra frente’. O cara que cuspiu em mim ficava mandando o motorista abrir a porta para ele descer. E o André dizia para o motorista: ‘Você não abre a porta, motorista. Não abre. Você só vai abrir essa porta na delegacia, ele agrediu a senhora, ele cuspiu, ele xingou.’. O André foi o meu anjo, foi Deus quem colocou ele ali pra me defender. Porque se aquele cara me bate, eu não ia ter reação nenhuma. Sabe quando você não entende o que está acontecendo? Fiquei meio passada.Na delegacia [5ª DP], o André falou assim: ‘Não entendo nada de lei, não, mas isso que ele fez foi racismo. Então ele deu uns telefonemas e começou a chegar gente na delegacia, advogado, o pessoal da secretaria [Seppir]. Eu continuava meio passada, não conseguia nem me lembrar do telefone da minha casa. Nesse dia, eu havia esquecido o celular em casa. Fui ficando mais nervosa com tanta gente estranha e eu sem ninguém da minha família. Quando foi umas quatro e meia uma policial disse assim: ‘Dona Sônia, a imprensa está lá fora, a senhora vai querer falar?’. Fiquei apavorada. ‘Não quero falar com ninguém. Só quero sair daqui.’O que ficou mais em mim foi a agressão moral, é uma humilhação muito grande uma pessoa cuspir na sua cara, do nada. Eu não estava fazendo nada com ele, não estava nem olhando para o lado dele. Até hoje, não tenho coragem de pegar o Circular onde eu peguei porque tenho medo de me encontrar com ele. Também não pego mais ônibus vazio. Um dia desses passei um pavor danado porque tive a impressão de ver ele, meu coração acelerou. Logo depois do que aconteceu, eu não conseguia sair sozinha de casa, minha filha mais nova é que saia comigo. Quando eu ia tomar banho para ir pro serviço, me dava aquela angústia, aquele medo. Chorei durante muitos dias. Fiquei muito depressiva, não dormia direito, uma semana, duas semanas eu fiquei assim. Aos poucos, fui superando. Mudei de horário de trabalho e pego outro ônibus. O meu pavor é saber que eu ainda vou ter que olhar pra ele na Justiça.Lá onde eu moro todo mundo me conhece, participo da igreja, sou catequista. As pessoas se revoltaram mais do que eu. Todo mundo ficou solidário a mim. A psicóloga me diz que tenho de tirar uma coisa melhor de tudo isso. E eu mudei muito. Por mais que falassem, eu achava que racismo não acontecia. Achava um absurdo a pessoa discriminar a outra pela cor. Isso mudou a minha visão. Comecei a olhar o ser humano de outra forma. Agora eu sei que existe maldade. Enquanto não acontece com a gente, a gente não quer acreditar. A gente tem que passar ou ver pra crer. A minha ficha caiu.Sempre fui muito quieta. Casei praticamente com o primeiro namorado, e já fui cuidando de casa, já tive as minhas filhas. Me separei depois de doze anos de casamento. Nunca mais namorei, só vivi para as minhas filhas, pra servir a Deus e pra meu trabalho.Eu não sei o que passa pela cabeça dele [do rapaz que a agrediu], o que soube é que a mãe dele disse que ele é esquizofrênico. Penso que se a pessoa tem um problema desses não pode andar sozinha por aí. Se ele estivesse armado, teria matado a gente dentro do ônibus. Então, alguém tem que se responsabilizar. E se ele fez isso é porque alguém plantou isso dentro da cabeça dele.Naquele dia, uma repórter me perguntou qual era o sentimento que eu estava tendo por ele naquele momento. Eu respondi: ‘Agora você não me pergunta isso, porque eu não sei.’ Mas se você me perguntar hoje o que eu tenho por ele, eu respondo: Medo. Não de passar por isso de novo. Eu tenho medo de me encontrar com ele. Mas eu sei que, se eu passar por isso novamente, já vou estar mais preparada. Já sei como reagir. A gente tem que aprender a lutar, a não ficar calado. Então, se isso acontecer comigo de novo, e espero que não aconteça, não vou ficar igual eu fiquei, em estado de choque.Tirei uma força de tudo isso. Se algum dia isso acontecer com alguém perto de mim, eu tentarei defender a pessoa. Não posso me calar. Porque é uma agressão que dói mais do que a física. A física passa na hora e a outra fica aqui dentro.

Fonte: Correio Braziliense

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